quinta-feira, 30 de outubro de 2008

AUTORES VETERANOS CLASSIFICADOS COMO ESTREANTES

Depois de divulgados os finalistas da primeira edição do Prêmio São Paulo de Literatura, que contemplará com R$ 200 mil o vencedor de cada categoria – Melhor ficção de 2007 e Melhor Ficção de autor estreante de 2007, começaram a surgir irregularidades. O edital do concurso reza que deveriam ser selecionados dez finalistas em cada categoria. O juri modificou as regras e prejudicou vários concorrentes. Mas, o problema maior é que não foi obedecida a regra para a escolha dos autores estreantes, tendo sido contemplados os seguintes livros e autores:
Casa entre vértebras – Wesley Peres – Editora Record, A chave de casa – Tatiana Salem Levy – Editora Record, Desamores – Eduardo Baszczyn – Editora 7 Letras, Estado vegetativo – Tiago Novaes – Editora Callis, Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi – Cecilia Giannetti - EditoraAgir.
O escritor Tiago Novaes, autor de Estado Vegetativo, publicou em 2004 o livro de contos (ficção) intitulado “Subitamente Agora”, pela Editora 7 Letras.
Com financiamento da Secretaria da Cultura de São Paulo, escreveu o romance classificado, que foi editado por outra empresa.
Wesley Peres (aliás, Wesley Godói Peres), também não é estreante, haja vista que escreveu “Águas Anônimas”, publicado em 2002. Em 2003 lançou a obra “Revoando”, pela Editora da Eca USP.
O item 2.4. do Edital do concurso literário, diz:
“Para concorrer ao Prêmio de Melhor Livro do Ano – Autor estreante do Ano de 2007, o livro deverá ter sido escrito por autor que não tenha outro livro de ficção publicado”.
No que concerne aos dois autores classificados, o regulamento não foi obedecido, porque editaram outros livros de ficção (contos e poesia se encaixam na categoria, conforme os melhores tratados de Teoria Literária).
Provavelmente, o Poder Judiciário, provocado através de mandado de segurança, terá que se manifestar acerca das ilegalidades cometidas.

FANTASMA DO XAXADO

FANTASMA DO XAXADO
Anthonny Ribb
Delciolina ou Delcí para os íntimos nasceu em 1938 na bonita cidade de Viçosa localizada próximo ao Piauí, a noroeste do Ceará.
Em 1954 embarcou em um pau-de-arara, rumo a São Paulo.
Indicada à professora Telma pela prima Valdinete, que residia havia dez anos em São Paulo, a adolescente desqualificada profissionalmente foi admitida como doméstica, sem maiores problemas, a despeito de o marido da patroa ser mulherengo contumaz.
(As serviçais da casa não escapavam às suas cantadas, e com Delcí a professora Telma não corria perigo).
A cearense era mais feia que a morte, branquíssima, magérrima, de rosto agudo, cabelos crespos, corpo retilíneo e não aguçaria a libido de Marcos.
Ele apreciava as curvilíneas, pródigas no nordeste.
Por conta da falta de atributos físicos, Delcí jamais despertou a luxúria de qualquer homem. O leiteiro Valdir, seo Manuel da padaria, Osmar açougueiro e outros espécimes do sexo masculino, eram famosos conquistadores do bairro e Delcí lhes passou despercebida.
(A migração provocada pelas constantes secas no nordeste, trouxe à cidade de São Paulo a cultura popular daquela região, incluindo os bailes denominados forrós).
Ao completar dezoito anos a cearense passou a freqüentar forrós, onde permanecia sentada durante horas, porque não era convidada a dançar.
De madrugada a maioria das mulheres tinha se retirado do salão. Os homens semi-embriagados tiravam Delcí para dançar o xaxado, o ritmo preferido dela.
Devido à feiúra nada núbil, Delcí foi apelidada pelos freqüentadores dos bailes, de “Fantasma do Xaxado”.
Em 1956 a migrante matriculou-se em curso preparatório ao exame de madureza (o supletivo da época), onde permaneceu por três anos e meio, sem ser galanteada por qualquer dos inúmeros colegas.
(O tempo passou e a migrante permaneceu solteira).
Aos trinta anos Delcí se matriculou em faculdade particular recém criada, onde cursou Direito.
Formada, foi admitida aos quadros da entidade de classe dos advogados e começou a exercer a profissão, obtendo razoável êxito, deixando para trás as faxinas domésticas e a higienização dos bebês da professora Telma.
Comprou um fusca usado e o dirigia com a cabeça empertigada.
(Considerava-se a pessoa mais importante do planeta: de humilde passou a intratável).
Era freguesa cativa dos pacotes turísticos, viajando duas vezes ao ano na classe econômica de aviões fretados.
Sem sotaque, falava o autêntico paulistês e dizia que nasceu no interior de São Paulo. A farsa durou até o dia em que se defrontou com Raimundo, seu antigo par nos fins dos forrós.
Delcí comemorava o happy-hour em um bar freqüentado por advogados, juízes, promotores públicos e outros profissionais da área jurídica.
Ela participava de uma mesa com mais dez colegas, dentre eles veterana advogada defensora de valores ultrapassados.
A cearense havia adotado discurso estranho para quem a conheceu no tempo das vacas magras. Para os colegas, ela era filha de fazendeiros do rico interior paulista. Delcí criticava a tudo e a todos, principalmente os aviões brasileiros, com farpas para o cabeça chata Lula.
Nos tempos de penúria era mal ajambrada, com forte sotaque da terra de Iracema, porém sem o charme da virgem dos lábios de mel, embora conservasse a virgindade por motivos alheios à sua vontade.
Repentinamente saiu de uma mesa dos fundos do bar, Raimundo, velho colega de forrós de Delcí, que ao reconhecê-lo sentiu o chão sumiu ante seus pés.
Raimundo, que trajava bem cortado terno de tropical inglês, a cumprimentou:
-Como vai, senhora?
-Senhorita, por favor!
-Desculpe. Esqueci seu nome.
-Doutora Delcinete, a seu dispor.
-Muito me satisfaz vê-la bem.
-Perdoe-me, mas qual é seu nome?
-Raimundo Nonato da Silveira Ramos Bisnetto, seu criado!
-Ah sim, lembrei-me, você é peão de obras. Este bar é caro, somente freqüentado por doutores como eu!
-Há trinta anos deixei a profissão, estudei e exerço outra atividade.
-Você é mestre de obras?
-Sou desembargador federal.
(Delcí corou-se mais e calou-se)
Raimundo foi gentil ao não chamá-la pelo apelido.
Percebeu que a antiga rejeitada dos bailes de peões se tornou pernóstica.
Ele morava em São Paulo há mais de trinta anos, conservava o sotaque cearense, além de cultivar a cultura de sua terra natal.
Deixou de lado os salamaleques, tirou um livreto de sonetos de cordel do bolso, e perguntou a Delcí:
- Sou poeta popular e preservo a cultura do nosso Ceará. A senhorita aceita um exemplar de meu último livreto, com dedicatória?
- Por favor, Excelência, me trate por Delcí e saiba que aceito com prazer o presente.
Aceitou porque o livro viria com dedicatória e assinatura de desembargador federal.
Jamais desconfiaria que fosse humilhada definitivamente.
Raimundo em tom jocoso e criativo escreveu em acróstico a dedicatória:
Distinta migrante nordestina,
Elevada a douto título!
Lembro-me de sua antiga sina,
Como era difícil o apodo
Ímpio de Fantasma do Xaxado!
Delcí leu a quadrinha lívida, enquanto Raimundo se despedia com sorriso maroto no lábios.